quarta-feira, 3 de novembro de 2010

HISTORIADORES: OS PROFISSIONAIS QUE PODEMOS SER

EDITORIAL DA ANPUH

A iniciativa da ANPUH de mobilizar seus filiados para acompanharem o projeto de lei sobre a profissionalização de “historiador”, apoiando-o, é ótima. Surgir no Brasil oficialmente a figura do “historiador” poderá, talvez, ajudar as pessoas a aceitarem que o historiador é o melhor para ser contratado e/ou concursado para fazer algumas atividades que outros profissionais exercem.
Em 2007, na ANPUH de São Leopoldo, houve uma mesa sobre "espaços de atuação do historiador". O historiador editor da Revista de História da Biblioteca Nacional esteve na mesa, falou pela revista – uma iniciativa exitosa e criteriosa, que vende em banca de jornal para um leitor formado e não-especialista. É um campo de atuação, o qual exige que jornalistas e historiadores troquem seus conhecimentos. Por que não? Onde estudei, na UFMG, há uma rádio educativa, cuja produção é sedenta de divulgação de conhecimento, estima a colaboração de historiadores e de outros “cientistas”. Alunos e professores dos cursos de Educação, Geografia, Educação Física, Filosofia, Letras, Direito todos têm iniciativas lá. Já os historiadores, por iniciativa própria, praticamente não aparecem! Por quê?
Claro que para rádio, televisão, revistas de grande circulação, cinema etc., teríamos de ter alguma formação mínima nessas mídias, da mesma forma que temos uma robusta formação para a mídia “livro” para sermos escritores de livros. Olhemos para o lado: há muita universidade onde há uma rádio e uma televisão de caráter educativo-cultural! Não podemos integrá-las a nosso fazer? Não é o caso de pensar com mais dedicação em difundir o conhecimento histórico como maneira de formar também, ou ajudar a oferecer sentido para pessoas não-especialistas que querem nos ouvir/ler?
Há uma enorme dependência da História quanto ao livro. Isso é lugar comum dizer. Tudo bem que a História se concebe a partir da verificação de autenticidade e valor de documentação e sua produção se faz a partir de dispositivos de organização e de crítica de documentos que são textos. Creio que podemos ajudar a melhorar a consciência pública – se não acreditasse nisso seria difícil viver. Não é isso que fazemos dia a dia com nossos alunos? Mas será mesmo que o que “nos constitui”, nossa “única verdade” é escrever livros e fazer conferências para nós mesmos? Isso é importante para o intercâmbio de idéias, para o dispositivo de funcionamento do campo científico, sem dúvida! O conhecimento requer o livro, mas não é pouco achar que só aprendemos e/ou ensinamos por ele? Serge Gruzinski esteve em 2008 na UFMG fazendo palestras. A certa altura, ele falava do embaraço de historiadores franceses prestando consultorias para exposições, e levantava um livro, repetindo: "a gente só sabe escrever livros...". Se atuarmos em outras atividades isso vai nos fazer necessariamente menos criteriosos e com menos qualidades?!
Nossos cursos não poderiam incorporar uma ou outra disciplina de Artes Visuais, Cinema, Comunicação etc., como matérias eletivas e/ou optativas? Por que não? Não poderíamos ter pequenos “núcleos de formação” dentro das grades de nossos cursos que envolvessem disciplinas que nos ensinassem o que é “fazer roteiro”, “editar imagens e sons”, “montar um filme”, “escrever e editar jornal e revista” etc.? Não seria possível que os cursos de História incorporassem como trabalho final o video-documentário, o filme, o programa de rádio, um plano de proteção de patrimônio com fotografias, um roteiro de peça de teatro, um artigo de revista? O aluno teria de ler e escrever para chegar a esses “produtos”, mas escrever para ler não seria um fim em si mesmo.
Não falo isso tudo para derruir o que já existe consolidado em nossos cursos de excelência acadêmica. De jeito nenhum! Há anseios para mudanças, mas esbarramos sempre nas "tradições da história". Se for para profissionalizar e ficar no ler, discutir e avaliar por escrito, francamente, não sei se andaremos muito! Ficaremos onde estamos, o que é conquistado dia a dia a custa de muito esforço: mas os cursos só saberão formar alunos para serem professores outra vez! E olha que nem estou falando de serem professores de escolas fundamental e média, o que é uma outra longa conversa. A formação sólida tem de continuar existindo: podemos nos propor a atuar em outros espaços porque somos consistentes. Tenho orgulho de sair de um curso de História com nível de excelência. Há muito já incorporamos o cinema, a fotografia, o rádio, a revista etc., como objetos de análise. Não será hora de adotá-los como instrumentos de nossas práticas, abrindo a possibilidade de historiadores poderem fazer filmes, rádio, revistas – ou colaborarem aí, quando convocados? Pois então: façamos!!!! Tenho profunda impressão de que esse mínimo deslocamento faria muito bem a nós, revalorizando-nos, e, quem sabe?, melhorando nossa estima e reconhecimento social. Não podemos atuar em espaços de difusão de conhecimento que há muito tempo são de nossa vida, como rádio, televisão, jornais, revistas, cinema, internet etc? Há riscos aí? Claro, mas onde não há riscos?
Com a profissionalização de “historiador”, passaremos a constar, talvez, nos editais de concursos públicos de modo geral, e pode ser que isso ajude a que as pessoas se aproximem da História como algo que faz sentido. O fato de sermos inexistentes, quando não inúteis, para a grande maioria das pessoas, não acredito que agrade a maioria de nós. Não seria interessante partir para uma ofensiva de ocupar espaços onde podemos atuar, relativizando premissas de há muito assentadas que fundaram um dia nossa disciplina?
O movimento pela profissionalização é um bom momento para pormos questões sobre nossa formação. Há resistências da parte de colegas tentando garantir lugares e reforçando paradigmas? Claro, e isso é legítimo. Mas problema não é só esse. Se nos ausentamos dos espaços em que poderíamos estar atuando, e reclamando de que outros profissionais os ocupam, ficamos ressentidos. Acho natural que haja resistências, porque há muita caricatura, perfumaria de história por aí. Mas isso tudo merece existir: o que importa é que outros profissionais mostrem que é possível fazer diferente!!!
É difícil ouvir das pessoas que os historiadores amam coisas velhas e que nosso lugar é o museu. Se isso tem um fundo de estupidez, não há também um pouco de verdade? Todo o movimento de profissionalização poderá restar inócuo se não houver alguma abertura de nossos cursos para componentes da formação do historiador mais afeitos a capacitá-lo a fim de atuar em outros lugares que podem ser “nossos” também. Além do trabalho a ser feito junto a senadores e deputados pela aprovação do projeto de lei, creio deva haver um trabalho interno à comunidade historiadora, num momento em que assumimos que é preciso discutir sempre a história da História. É dura a herança de que do historiador pode-se esperar verdades, como se só os historiadores pudessem assim o fazer. Não carregamos um fardo aí? Talvez esse fardo fosse uma vantagem no século XIX, mas hoje, no XXI, acho que só vai deixando a História para trás, ensimesmada. Francamente, não sei se essa é nossa vocação. Se formos mais versados, e versáteis, em outras “artes” e modos de dizer a história, não sei, sinceramente, se deixaríamos de ser os profissionais que somos, com uma formação específica de qualidade, assentada em teorias, conceitos e metodologias que nos são próprios, profissionais de quem muita gente gostaria de saber o que têm a dizer e/ou falar sobre muitas coisas.

Bruno Flávio Lontra Fagundes
(Recém-doutor em História, tem experiências com programas de História na Rádio UFMG Educativa)

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